quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Como vencer a crise

A estratégia e o exemplo de Carlos Ghosn, o superexecutivo brasileiro que salvou a Nissan da falência e a transformou na mais rentável montadora do mundo

O executivo brasileiro Carlos Ghosn é reconhecido no mundo todo como autor de uma estratégia brilhante que tirou a japonesa Nissan de uma situação de bancarrota e a transformou numa das montadoras mais admiradas do planeta. Veja algumas de suas lições, retiradas de sua biografia, Cidadão do Mundo, escrita em conjunto com o jornalista francês Philippe Ries, que está sendo lançada no Brasil pela editora A Girafa:

A GESTÃO IDEAL 

“Não creio que exista um modelo de administração gravado na pedra. Trata-se de um procedimento que se constrói à medida que se faz. É nos testes que o modelo é forjado. Numa situação normal, você maximiza. Em situações de crise, o modelo se reconstrói.”
A FORMAÇÃO É ESSENCIAL, MAS É IMPORTANTE SUPERA-LA 

“Por gosto, sou alguém que ama as letras, mas que recebeu uma formação de matemático e de engenheiro e atua no mundo dos negócios. Meus gostos me levam mais para os idiomas, a história, a geografia, o vínculo entre língua e cultura. Mas recebi uma formação científica. Isso faz de mim um engenheiro que exerceu muito pouco a engenharia enquanto tal. Pode haver diferenças muito importantes entre os gostos, a formação, quer dizer, a formação de base, e, de outro lado, a experiência profissional. Mas eu convivo com isso de maneira bastante harmoniosa.”
É PRECISO ANALISAR OS PROBLEMAS. OS FATOS SE IMPÕEM AOS ESQUEMAS TEORICOS PREESTABELECIDOS

“Em matéria de administração, minhas conclusões partem dos fatos para a teoria, não o inverso. É muito claro. Nas minhas reflexões sobre administração, parto dos fatos, da realidade. Observo as formas de funcionamento e tento, em seguida, elaborar soluções. Digo a mim mesmo: Já encontrei esse problema num contexto diferente, mas a solução que funciona é sempre mais ou menos a mesma. Meu procedimento no plano da administração se funda muito mais sobre a percepção de uma realidade, o exame dos fatos, a reação dos homens, para chegar em seguida à reflexão teórica, do que sobre um encaminhamento que iria da teoria à prática. É um procedimento muito eficaz, pois alia a reflexão a uma demonstração apoiada nos fatos. Evidentemente, esses fatos devem ser recentes. Se a reflexão é fundada sobre elementos que têm dez anos, o resultado não valerá mais nada. Por outro lado, partir de um raciocínio teórico para aplicá-lo aos fatos dá, na minha opinião, menos resultados.”
ANTES DA AÇÃO, UM TEMPO PARA ANALISAR A SITUAÇÃO 

“As trocas são muito importantes. Elas permitem entender não apenas o que pensam as pessoas ao seu redor sobre a situação que estão vivendo mas também captar a própria situação. Na administração, a compreensão das situações é essencial. Não apenas a percepção dos fatos, dos homens, da tecnologia etc. mas da situação que é a combinação dos fatos, homens… Apenas ela lhe permitirá saber o que é realizável e o que não é, até onde é possível ir e em que velocidade. É absolutamente fundamental a compreensão da situação, que determinará a amplitude da ação, o prazo para agir e o nível de aceitação.”
DEVE-SE OUVIR TODOS OS NIVEIS DA EMPRESA. PORQUE, SE UMA CRISE SE INSTALOU, HA FORTES CHANCES DE QUE A ALTA HIERARQUIA TENHA SE TORNADO UM OBSTACULO AO FLUXO DE INFORMAÇÃO E À SOLUÇÃO DOS PROBLEMAS 

“Para mim, o Plano 20 Bilhões, implantado na Renault, não tinha nada de irrealista, mas para muitas pessoas ao meu redor o objetivo era visto no princípio como uma utopia. Em tais condições, deve-se comunicar passando por cima da cabeça da hierarquia? A resposta é: Sim, mas sem provocação! Fui a campo, nos domínios em que exercia o controle hierárquico, mas também naqueles em que não era o responsável direto. Eu questionava, tentava compreender as situações, as preocupações dos homens de campo quanto aos produtos, à qualidade, aos custos, ao timing do lançamento de produtos.”
A CRISE SEMPRE CRIA UMA CULTURA DE ACUSAÇÃO E DESCULPA. ESSA ATITUDE DEVE SER COMBATIDA COM FIRMEZA

“Quando uma empresa enfrenta dificuldades, é sempre e antes de tudo por sua própria culpa. Evidentemente, o contexto exerce um papel. Se a economia está em crescimento ou se o país atravessa uma recessão, se as ta xas de câmbio são favoráveis ou desfavoráveis, isso atenua ou amplifica as dificuldades. Mas a fonte dos problemas é sempre você mesmo. A Nissan não decaiu por causa da estagnação econômica do Japão ou porque a Toyota e a Honda eram concorrentes muito poderosas. Os genes do declínio se encontravam no interior da empresa. E o reerguer da Nissan não se funda na fraqueza do iene em relação ao dólar ou numa retomada da economia japonesa, mas no fato de que a Nissan se questionou a partir do interior. A causa do declínio encontra-se sempre na mecânica íntima do funcionamento da empresa. É, aliás, por isso que as intervenções exteriores, venham elas de um governo ou de qualquer outro organismo, nunca são determinantes. No melhor dos casos será um empurrãozinho para uma evolução interna. Atrasar essa evolução custa muito. Quando é necessária uma intervenção do exterior para ajudar uma empresa, é sinal de que ela é incapaz de se reconstruir por si mesma, de que as condições necessárias à sua regeneração não estão reunidas.”
A ADMINISTRAÇÃO DEVE TER CONVICÇÃO. DEVE ASSOCIAR O SEU FUTURO AO DA EMPRESA 

“Tenho uma visão da administração que é relativamente simples. O dirigente assume o passado e o futuro da empresa, sejam quais forem. Não é possível dizer: Eu cheguei, mas antes de mim a situação era a tal ponto desastrosa que a única coisa que posso fazer é aparar as arestas. Na Nissan, para mim seria impossível dizer: Fracassei no meu plano, mas foi porque, antes de mim, haviam sido cometidos tantos erros que eu não poderia superá-los. Se aceito a direção de uma empresa, eu assumo o passado, o presente e o futuro, e quando me engajo não há um mas, um se, não há condições. Assumo o risco em sua integridade e me comprometo a fundo.”
O CHEFE DA EMPRESA TEM OBRIGAÇÃO DE TRANSMITIR E MANTER A FÉ NO FUTURO 

“A responsabilidade social do chefe de empresa é, desde o início, ser o seu líder. Não somente em relação aos quadros dirigentes mas também perante a hierarquia intermediária e aqueles que fabricam o produto ou estão em contato com o cliente. É preciso se assegurar de que a visão da empresa, de seu futuro, seja conhecida, compreendida, partilhada, tanto pelo operário que trabalha na fábrica quanto pelo vendedor nas concessionárias. É preciso ter a certeza de que, para sustentar essa visão, haverá uma estratégia relativamente simples, articulada e partilhada, e que essa estratégia incorpora objetivos cruciais, identificados e classificados por ordem de prioridade. E é preciso fazer que a contribuição esperada de cada um seja conhecida de modo quantitativo. Na própria escolha do nome Nissan 180 há uma vontade de clareza. Todos os objetivos maiores estão contidos no título. O um designa 1 milhão de carros vendidos; o oito, 8% de margem operacional; o zero, a eliminação total do endividamento. Nós definimos a estratégia em termos simples: mais rendimentos, custos competitivos, mais qualidade, mais velocidade, uma aliança mais forte com a Renault. Tudo é exposto de maneira simples, clara, quantificada, para haver a certeza de que em todos os níveis da empresa, mesmo naqueles em que o pessoal é menos familiarizado com as sutilezas da estratégia, as pessoas compreendam para onde vamos, como chegaremos lá e qual deve ser sua contribuição. A responsabilidade do chefe de empresa consiste em associar a totalidade do pessoal com a administração e em ter compromissos com resultados.”
NA NISSAN, HA PESQUISAS REGULARES ENTRE OS FUNCIONARIOS PARA SABER O QUE ELES PENSAM DA ADMINISTRAÇÃO, DA QUALIDADE DA COMUNICAÇÃO, DA RAPIDEZ DA TOMADA DE DECISÃO, DA CLAREZA DAS CONTRIBUIÇÕES E DAS RESPONSABILIDADES 

“Perante as 130 000 pessoas que trabalham na Nissan, a responsabilidade do dirigente é esclarecer, agregar pessoas. Ao lado disso, é preciso ter a preocupação de motivar aqueles que fazem a empresa, por meio da repartição dos frutos do progresso. Não se pode passar a idéia de que tudo se faz em função do cliente ou do acionista. É preciso levar em conta os empregados. Ao longo de 2001-2002, isso ficou muito claro. Nós enriquecemos nossos carros, dando mais a nossos clientes. Demos mais a nossos acionistas, através da revalorização das ações e do aumento dos dividendos, mas também demos mais ao conjunto dos funcionários, em todos os níveis, com aumentos dos salários e dos bônus. Não faço distinção entre o pessoal. Não divido a empresa em classes sociais. Existem responsabilidades atribuídas e contribuições esperadas. Mas minha visão da empresa é contínua. Trata-se de homens e mulheres que formam uma grande equipe e que trabalham cada um em seu nível de responsabilidade. É nosso dever informá-los e vinculá-los aos avanços da empresa, e devemos partilhar com eles o progresso da maneira mais honesta possível. Não somente em nível salarial mas também das condições de trabalho. Foram feitos investimentos em ergonomia nas fábricas. Estamos refazendo todos os locais de convívio, nas fábricas e na sede. O agregar valor deve ser multidirecional, beneficiar a todos. É verdade que alguns se beneficiaram mais do que outros, mas eles também contribuíram mais do que outros.”
O CHEFE DEVE CUIDAR PARA QUE A EMPRESA CONTINUE SENDO UM MEIO PRIVILEGIADO DE ASCENSÃO SOCIAL 

“Há um nível de responsabilidade a partir do qual o que conta é o homem. Não é tanto sua especialidade. É sua capacidade de compreender, de escutar, de motivar, de simplificar, de mobilizar. Os diplomas ajudam, mas não há nada que impeça que alguém vindo da base se destaque. A empresa continua sendo um vetor de promoção social. Quando você entra nela, não sabe até onde irá. Meu caso pessoal é um pouco a ilustração disso. Entrei na Michelin como simples engenheiro, ainda por cima originário do Brasil, e sem ter, na época, a nacionalidade francesa. Hoje, sou o dirigente da Nissan. Se estou aqui, não é porque sou um politécnico ou um engenheiro de primeira. É porque fui capaz de realizar algumas coisas associando as pessoas em torno de mim. Foram mais as virtudes manifestas na gestão dos homens do que minha formação de base que me ajudaram. A complexidade crescente da tecnologia ou das finanças não é absolutamente um obstáculo. Ao contrário do que pensam certos dirigentes, resolver os problemas da empresa não quer dizer compreendê-los em todos os seus detalhes, mas assegurar-se de estar cercado por colaboradores capazes de ir a fundo nas questões e de resumi-las de modo a que você possa tomar ou fazer tomar as decisões mais adequadas.”
O DIRIGENTE NÃO PODE SE FECHAR NA TORRE DE MARFIM 

“É preciso sentir a empresa, sentir os clientes. Só então é que se pode tomar as decisões. Sentir a empresa é tão importante como compreendê-la. Não se pode jamais deixar de ir a campo. É indispensável, porque é lá que você sente a empresa e, além disso, a comunicação que você passa, as mensagens que você envia, o estado de espírito que se cria na empresa são insubstituíveis. Ir a campo é demonstrar que existe uma linearidade, que a empresa não é formada por castas. Eu visito uma fábrica, assim como um centro técnico ou um showroom. Vou aos Estados Unidos, como à Europa ou ao Japão. Sinto-me à vontade em todos os lugares. Digo as mesmas coisas em todos eles, ainda que a forma possa variar. Estou em um mundo único, que é aquele da empresa. Não a vejo sob a forma de categorias, de seitas, de paróquias. Não tenho essa visão. Ela talvez exista, mas não é a minha, e não atuo em função dela. Tendo trabalhado 18 anos na Michelin, evidentemente fui influenciado pela cultura da empresa, que era efetivamente muito voltada para as pessoas. E não me lamento por isso. Se tivesse começado num lugar muito burocratizado, provavelmente manifestaria tendência a também sê-lo.”
A EMPRESA TEM DE SER FIEL À SUA VOCAÇÃO PRINCIPAL 

“Minha visão da indústria automobilística é bastante clássica. Em primeiro lugar está o produto. Uma vez que o produto tenha atingido um nível de excelência, pode-se desenvolver outras atividades. Mas jamais é viável se engajar em atividades derivadas sem que se tenha assegurado antes de maneira sólida, robusta, permanente, que se é muito bom no cerne do negócio. Numa indústria que é tão competitiva, na qual o produto evolui tanto, uma diversificação mal controlada é um erro fatal. O automóvel é um produto que evolui muito, situado no cruzamento de toda espécie de revoluções tecnológicas, no sistema de informações, de eletrônica, do conhecimento de materiais, dos motores, dos sistemas de transmissão, do processo de fabricação. É um produto submetido a regulamentações exteriores, a pressões como aquelas que resultam da preocupação legítima de proteger o meio ambiente. O estado de espírito dos consumidores muda, suas aspirações em matéria de confiabilidade e de custos evoluem. Para migrar desse produto altamente complexo para os serviços é preciso realmente estar muito seguro. Não se muda para outros setores quando se tem, ou quando se arrisca causar, deficiências de desempenho evidentes sobre o produto de base. Vamos nos voltar para coisas muito mais clássicas. Estou convencido de que é preciso concentrar-se sobre o automóvel. É preciso se concentrar sobre o produto. Quem perde de vista o produto está condenado.”
CUIDADO COM A DIVERSIFICAÇÃO 

“Desenvolver novas atividades pode ser uma boa coisa. O erro a evitar é que isso se faça em detrimento da competitividade do produto automobilístico. Toda vez que uma montadora enfraqueceu sua oferta no coração do negócio, que é o produto, porque quis diversificar, ela pagou muito caro. Lançar-se em atividades periféricas, sim, mas sob a condição de que o produto principal continue a ser fortemente desenvolvido. Em certos casos, a montadora desenvolveu o ramo de equipamentos (Magneti Marelli, para a Fiat), um setor financeiro, de eletrônica, e esqueceu o automóvel. Eles se encontraram com uma linha envelhecida, com muito pouca inovação, problemas técnicos, dificuldades nas relações com os fornecedores etc. Não é uma questão de estrutura familiar de acionistas. É uma questão de administração. É possível desenvolver-se na periferia, sob a condição de que o coração do negócio seja muito forte.”
COMO ESTABELECER UMA GESTÃO DE LONGO PRAZO E, AO MESMO TEMPO, LIDAR COM A DITADURA DO CURTO PRAZO QUE SE IMPOS SOBRE OS MERCADOS FINANCEIROS DURANTE OS ANOS 90 

“No que diz respeito à gestão de curto prazo, a culpa não cabe unicamente aos analistas. É preciso ver as coisas como elas são. Se uma empresa só expressa uma previsão de curto prazo, e nada para o médio e o longo prazos, os analistas só podem olhar os resultados de curto prazo. Eles não têm outras referências. O que fizemos na Nissan, e continuamos a fazer, é anunciar um plano de três anos, com etapas quantificadas. E, a cada etapa, fazemos as contas. É um modo de colocar a evolução da empresa em perspectiva. Evidentemente, isso pode levar a fazer coisas muito qualitativas, e os analistas detestam isso. É preciso tentar quantificar a evolução da empresa. No Plano Nissan 180, anunciamos 1 milhão de carros produzidos a mais num prazo de três anos, uma margem operacional de 8% e a dívida zerada. Para chegar a isso, vou proceder em seis etapas. Se um semestre for mal, mas você puder explicar como vai arrumar a situação, o mercado o perdoará. Ao contrário, na ausência de perspectiva quantificada a médio prazo, se você tiver problemas com seus resultados a curto prazo, não sobrará nada por trás. E você receberá um cartão vermelho gigantesco quando anunciar seus resultados. Lógico, há uma pressão dos mercados financeiros no curto prazo, mas, francamente, acontece com freqüência que as próprias empresas se colocam numa situação que amplifica esse fenômeno. Nem todos os atores no mercado financeiro apostam no curto prazo. Existem grandes fundos de investimento que estão lá para o longo prazo. Os que fazem mais barulho costumam ser os que jogam no curto prazo, mas eles não são necessariamente sempre os mais importantes. Entretanto, se a administração não fornece elementos confiáveis, quantificados, com um cronograma, porque não quer se comprometer por três anos, ela se torna, então, cúmplice dessa situação.”
UM MODO PERMANENTE DE OPERAR 

“Depois do Plano Nissan 180, ainda há a necessidade de propiciar visibilidade à empresa. Ela é indispensável no plano interno e, por decorrência, é preciso comunicá-la no plano externo. O sistema que consiste em esclarecer o panorama para um período razoável, três anos, é muito saudável. Entretanto, desde o segundo ano, é preciso começar a refletir sobre o que virá depois. Não é nenhuma grande novidade: após o 180, haverá um novo plano trienal. Eu alargo o horizonte à medida que a ação se desenrola. Um primeiro plano de três anos; depois, outro de seis anos no total; e, hoje, entre nós, falamos de nossa visão da empresa, de sua missão e dos planos diretores que posicionaremos numa perspectiva que vai até 2010-2012.”
Fonte: Exame

Nenhum comentário:

Postar um comentário